Renato Paiva

Como gerir a fuga dos mais novos para o mundo dos videojogos?

Como gerir a fuga dos mais novos para o mundo dos videojogos?

Transcrição de um artigo da jornalista Karla Pequenino do Público na qual dou meu contributo.

 

Como gerir a fuga dos mais novos para o mundo dos videojogos?

Como em qualquer altura, os profissionais da área notam que há vários benefícios no mundo dos videojogos, mas é preciso manter o cuidado com excessos.

Arotina do Luís, de 10 anos, tem-se mantido quase igual. De manhã, depois do pequeno-almoço, começa com as aulas — só que em vez de sair para a escola, espera que a mãe ligue o computador para ter acesso às tarefas dos professores. E ao fim do dia, como já é habitual, entra na arena para se juntar aos amigos no mundo dos videojogos. Um dos preferidos, é o Brawl Stars, uma batalha online em que jogadores ligados se dividem em equipas cujo objectivo principal é derrotar a base inimiga.

“Gosto do jogo porque é desafiante. É preciso pensar para ganhar e vamos ficando cada vez melhores. Também dá para falar e criar planos de batalhas com os meus amigos quando estão online”, diz ao PÚBLICO Luís (nome fictício), por telefone, numa pausa da escola. Tem o cuidado de soletrar o jogo (“é com b de bola, b-r-a-w-l“), em inglês, para que não seja confundido com o outro. “Também gosto de jogar FIFA, PES… Há vários”, diz, enumerando alguns campeonatos de futebol disputados através do ecrã.

 

A mãe tenta que jogue apenas 30 minutos por dia. “Quero manter a rotina e garantir que ele só joga mesmo meia hora”, sublinha Manuela Manjerico, de 49 anos, uma educadora de infância em Setúbal. “Acho que há tempo para tudo. E nesta altura, as mensagens e os jogos online são importantes para manter o contacto com os amigos.

Travar a propagação de uma doença infecciosa exige que as pessoas se encontrem sem sair de casa. O mundo do entretenimento virtual pode ser uma boa estratégia para manter relações sociais, enquanto se foge, temporariamente, da realidade. Mas os limites devem continuar a existir.

“É preciso sempre um enquadramento quando se fala de videojogos. Como tudo, em excesso não fazem bem”, explica ao PÚBLICO o pedagogo Renato Paiva. “Os videojogos podem ajudar os mais novos a desenvolver a criatividade e a capacidade de perseverança para chegar ao final de um nível, mas é importante regular o tempo que passam em frente ao ecrã.”

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Duas equipas combatem para derrotar a base inimiga Brawl Stars

Enquanto estudos mostram que alguns videojogos podem ajudar a desenvolver regiões do cérebro (relacionadas com a orientação espacial, a formação de memória e o planeamento estratégico), há outros videojogos que podem fazer o contrário e diminuir a actividade no córtex pré-frontal. Trata-se da zona do cérebro que é responsável pela tomada de decisões e o controlo de impulsos. É essencial para travar a perseguição de recompensas imediatas (por exemplo, o prazer de continuar a jogar), face a objectivos a longo prazo (estudar a matéria de física e química para um teste).

“Quando isto acontece, os jovens tornam-se menos capazes de avaliar as consequências negativas de determinadas acções”, diz Renato Paiva. “É preciso que os pais criem um ambiente regrado em torno dos videojogos. Nem sempre é fácil, porque com jogos online os jovens sentem que se saírem de um jogo a meio, os colegas de equipa ficam prejudicados”, reconhece Paiva. “Mas é preciso ser-se firme.”

Filipa Pereira, mais conhecida como a jogadora “Hit” no mundo online do Counter Strike, recomenda ajudar os mais novos a encontrar “actividades alternativas”. Aos 29 anos, divide o tempo entre o trabalho na loja de peças de automóvel do pai, em Vila Nova de Gaia, e os torneios de videojogos com uma equipa só de mulheres com quem já ganhou prémios. Está no mundo dos videojogos online desde os 16 anos.

“Proibir as crianças de fazer algo de que gostam para fazer algo de que não gostam nunca é a melhor estratégia. Quando se proíbe, tudo parece mais apelativo”, avisa Filipa Pereira. Ao longo dos anos, tem percebido que os videojogos a ajudaram a desenvolver várias competências. “Dão uma grande cultura do mundo porque podemos contactar com pessoas de todo o lado, e ajudam bastante com o domínio do inglês. Há outra motivação para aprender a língua”, partilha Filipa Pereira.

Nesta altura, o entretenimento virtual também pode ser uma boa estratégia para alertar os mais novos sobre a transmissão de doenças infecciosas. Algumas organizações de saúde, como o Centro de Doenças Infecciosas (CDC), dos EUA, destacam o Plague (um jogo de estratégia popular em que o objectivo é criar surtos de doenças, manipulando condições globais) por alertarem sobre a disseminação de doenças, mantendo uma abordagem informativa.

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O jogo Plague ajuda a perceber a propagação de doenças infecciosas NDEMIC CREATIONS

Ver os videojogos “como comida”

Para a psicóloga Maria João Andrade, que coordena o Gabinete de Apoio à Saúde do Praticante Desportivo (GASPD) da Federação Portuguesa de Desporto Electrónico (Fepodele), é fundamental perceber que os videojogos não são todos iguais. “Muitas vezes falhamos quando se fala nos benefícios de videojogos em geral, ou se estuda videojogos de um ponto de vista muito amplo”, refere a psicóloga. “Deve-se pensar em videojogos, como se pensa em comida. Não se fala dos ‘benefícios da comida’ – fala-se dos benefícios de comer mais leguminosas, ou ervilhas. E os efeitos de diferentes videojogos podem ser diferentes.”

Parte do trabalho da psicóloga no GASPD é organizar acções de formação para garantir que os pais estão informados, numa altura em que alguns jovens começam a sonhar com carreiras como jogadores profissionais.

“É importante não dizer que não são profissões reais”, esclarece Maria João Andrade. “É preciso saber orientar o gosto dos jovens por videojogos para áreas como a edição de vídeos que podem ser muito úteis na área, mas também podem abrir outras avenidas.”

A psicóloga reforça que os jogos online podem ajudar a desenvolver tácticas de cooperação e liderança. “Com videojogos online, os jovens têm de aprender a lidar com as próprias falhas e com as falhas dos outros quando a equipa perde”, diz Andrade, notando que também há benefícios físicos ao nível da coordenação, rapidez de resposta e motricidade fina (capacidade para executar movimentos de precisão com controlo e destreza).

A psicóloga alerta, no entanto, que é “importante é estar-se informado sobre os videojogos a que os mais novos têm acesso.”

Saber decifrar o PEGI

Com as medidas de contenção para travar o novo coronavírus, há um surto na procura de jogos para descarregar online. De acordo com dados da plataforma de venda de jogos online Steam, existiam 20,3 milhões de jogadores em simultâneos na tarde de 15 de Março, um novo recorde para a plataforma que até ao final de 2019 não tinha ultrapassado os 18 milhões de jogadores, online, ao mesmo tempo.

Com o aumento da procura, é importante que os pais tenham atenção ao PEGI na escolha de um videojogo. Trata-se do sistema europeu de classificação do conteúdo de jogos electrónicos (Pan European Game Information, na sigla inglesa), em vigor desde 2003. O número atribuído ao jogo, entre o 3 e o 18, não está relacionado com a dificuldade, mas, sim, com o conteúdo. No nível 18+ (recomendado apenas para adultos) os jogos podem incluir exemplos de violência bruta contra personagens indefesos, referências a drogas, uso de linguagem profana, e sexo explícito.

“Ainda há muita desinformação e desconhecimento sobre como o PEGI funciona, mas é importante os pais começarem a olhar para a classificação etária”, nota o pedagogo Renato Paiva. “Há jogos em que se ganha pontos por violência, sem motivo, como atropelar velhinhas e grávidas.”

Uma das sugestões é garantir que os jovens estão na sala, a jogar, em espaços comuns, onde os pais os podem monitorizar e acompanhar. “Mesmo com videojogos sem violência, podem existir reacções preocupantes, como comandos a voar quando se perde”, explica Renato Paiva. “Deve-se falar sobre este tipo de reacções. E só ao ver os filhos a jogar é que se percebe isto.”

O tempo de jogo não é o mais importante. “É preciso avaliar o investimento que os jovens dão aos videojogos e a capacidade de desligarem”, acrescenta a psicóloga Maria João Andrade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define, desde 2018, o “distúrbio com videojogos” como uma “falta de controlo crescente” em que se dá cada vez mais importância aos videojogos, mesmo com consequências negativas (falta de sono, irritabilidade, exclusão de outras actividades do dia-a-dia) ao longo de um período de 12 meses.

Para João Pereira, de 24 anos, a estratégia é “manter uma rotina variada”. O jovem de Barcelos é um dos portugueses a jogar videojogos a nível profissional. Conhecido por “Joo” no mundo de League of Legends, deixou o curso de contabilidade em 2016 para jogar profissionalmente em Espanha. Actualmente, joga na equipa portuguesa For The Win.

“Contrariamente ao que se pensa, os jogos online não isolam”, diz João Pereira. “É preciso conviver e aprender a lidar com uma equipa, discutir estratégias e chegar a compromissos”, explica, reforçando, no entanto, que é importante não estar sempre online. “Eu jogo melhor quando faço pausas para outras actividades.”

 

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