Renato Paiva

O que leem (e como leem) os adolescentes?

O que leem (e como leem) os adolescentes?

A pedido da jornalista Sofia Teixeira da Notícias Magazine participo num artigo sobre hábitos de leitura dos adolescentes . Boas leituras.

“Ler implica foco, silêncio, um tempo lento. Ou seja, o contrário dos hábitos dos nativos digitais. Mais do que saber se cumprem as leituras escolares, importa descobrir o que é que os jovens leem por puro prazer e como é que esse gosto se pode estimular.

Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens

 

Francisco Ferreira trata os livros com estima, mas também com familiaridade suficiente para não recear dobrar os cantos das páginas em vez de usar marcador. É um leitor eclético como mostram os três livros que traz na mão: “Diário de um Adolescente na Lisboa de 1910” de Alice Vieira, que conta a história de um rapaz à época da queda da monarquia; “An Adventure on Madeira Island”, tradução inglesa da famosa coleção “Uma Aventura” de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada; e “Little House on the Prairie”, uma novela de 1935, da americana Laura Ingalls Wilder, sobre as suas experiências enquanto criança no centro oeste do país.

“Gosto de ler em inglês porque ganho mais vocabulário”, explica o adolescente de 15 anos, que frequenta o 9.º ano.

Usa várias vezes a expressão “estou a trabalhar um livro” quando se refere às leituras da escola mas, por oposição, considera as suas próprias leituras, que faz sobretudo quando está de férias, como momentos de descanso, deixando muito clara a fronteira entre a leitura por obrigação e por prazer.

Prazer para o qual tem pouco tempo durante a época de escola, com as aulas, os trabalhos de casa e os testes, mas nas férias de verão costuma aviar oito ou nove livros. Apesar de fazer esta distinção entres os dois tipos de leituras, isso não quer dizer que não aprecie algumas das obras que tem de estudar.

“Este ano já dei o ‘Auto da Barca do Inferno’ e gostei, é uma história interessante e divertida. O ano passado tive de ler o ‘Hobbit’ de J. R. R. Tolkien e o ‘Que Farei com Este Livro’ de José Saramago, e não gostei de nenhum dos dois: o vocabulário era pouco acessível.”

“Gosto de ler em inglês porque ganho mais vocabulário” (Francisco, 15 anos)

Os três livros que traz consigo têm histórias muito diferentes, mas uma coisa em comum: as personagens são adolescentes, como ele próprio. Não há grande mistério nesta preferência: os adolescentes gostam de ler obras com protagonistas da mesma idade porque conseguem relacionar-se com a história sob uma perspetiva mais pessoal.

“Nós só conseguimos ler aquilo para que estamos preparados”, explica a mediadora de leitura Andreia Brites. “Podemos ler um livro difícil do ponto de vista da linguagem se o tema nos for próximo e o inverso também é possível: ler algo cujo tema nos é estranho e sobre o qual não temos um conhecimento prévio estruturado, se for numa linguagem simples que nos permita compreender.”

Para Andreia, que trabalha desde 2005 nas bibliotecas de todo o país, sobretudo com jovens, esta adequação é muito importante: pô-los perante coisas para as quais não estão preparados é “matar” leitores. “Se lhes damos um tipo de livro para o qual ainda não tem competências, ele não só vai rejeitar aquele livro como muitos semelhantes.”

Francisco Ferreira, 15 anos: “Quando estou a ler, não estou com telemóvel. Não é possível estar a fazer as duas coisas ao mesmo tempo”. Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens

A mediadora acredita que recomendar-lhes leituras passa sobretudo por conhecê-los. “Gostam de animais, de carros ou de um desporto? São mais imaginativos ou mais pragmáticos? Há algum filme ou jogo de computador de que gostem e que possa influenciar na leitura de um livro? Tudo é válido. O mais importante é conhecê-los.”

Apesar disso, garante que há temas e géneros que, por norma, lhes são caros. “Os adolescentes, tipicamente, têm uma grande necessidade de ter, por um lado, contacto com as tragédias e com a realidade mais dura e, por outro, com a fantasia e a aventura.”

Isso ajuda a explicar os grandes fenómenos editoriais entre adolescentes: na categoria de “realismo verídico” estão volumes como “Os Filhos da Droga”, “O Diário de Anne Frank” e trabalhos sobre o Holocausto como “O Rapaz do Pijama às Riscas”; no departamento da fantasia e aventura, o sucesso são coleções como o Harry Potter, que explora o mundo da magia, e o Cherub, sobre uma divisão imaginária dos Serviços Secretos Britânicos que recruta agentes até aos 17 anos.

Prazer versus obrigação

“Acho que o primeiro da coleção li num fim de semana”, diz Manuel Moutinho, 17 anos, em relação à coleção Cherub, confirmando a tendência. Também não por acaso, um dos livros que mais gostou foi “Os Filhos da Droga”.

Como muitos outros adolescentes, Manuel gosta de estar com os amigos, navegar na net e jogar computador. Também aprecia desporto e pratica kickboxing desde os 14. Ler está fora das suas preferências, pega apenas em um ou dois livros por ano, apesar de estar sensibilizado para a importância da leitura. Manter o foco não lhe é fácil. “Se for um livro de que eu goste mesmo, consigo estar a ler sem me distrair com o telefone, mas se for, por exemplo, um livro para a escola, que estou a ler obrigado e do qual não gosto muito, é mais difícil e um bocado frustrante.”

Teresa Calçada, Comissária do Programa Nacional de Leitura (PNL2027), concede que entre as muitas causas da quebra de leitura por prazer entre os mais jovens está “o peso desproporcionado da leitura escolar e obrigatória imposta por programas, metas e avaliações curriculares, face a outras leituras”. Ou seja, há muitas leituras a fazer por obrigação e pouco investimento na promoção da leitura por prazer.

Não que alguém seja contra as leituras literárias no âmbito dos programas curriculares: “Mesmo as que possam ser mais aborrecidas devem, na minha ótica, continuar a existir. É uma forma de os alunos terem boas referências literárias e culturais”, defende Renato Paiva, diretor da Clínica da Educação/Academia de Alto Rendimento Escolar WOWSTUDY e autor de vários livros sobre o estudo dos mais novos. A questão passa por investir, motivar e dar tempo para as leituras autónomas, dentro do gosto e interesse de cada um, e sem uma avaliação formal associada.

“Se for um livro de que eu goste mesmo, consigo estar a ler sem me distrair com o telefone, mas se for, por exemplo, um livro para a escola, que estou a ler obrigado e do qual não gosto muito, é mais difícil e um bocado frustrante.” (Manuel, 17 anos)

“A criança tem de aprender a diferença entre o ato de aprender e o prazer de ler”, defende Teresa Silveira, investigadora e autora do livro “O Cérebro e a Leitura”. Por isso, faz um apelo: “Se a criança não está em aprendizagem e a ideia é promover a leitura e o prazer de ler, não façam fichas com perguntas depois”, defende. “Imagine que nos obrigavam a responder a uma ficha com perguntas sobre o filme de cada vez que vamos ao cinema. Se calhar deixávamos de ir tanto.”

Andreia Brites garante que esta necessidade de trabalho associada a tudo mata mesmo outros gostos que lhes podiam ser próximos: “Se há coisa que podia entrar muito bem na rotina dos adolescentes é a poesia: é curta, rápida, está próxima da composição musical e fala de coisas que normalmente lhes são próximas. Acaba por não lhes interessar porque vem sempre acompanhada de um pedido de interpretação do que foi lido”.

Mas será que vale a pena “obrigá-los” a pegar num livro uns minutos por dia? “A maioria dos miúdos não lê em casa porque os pais também não leem”, considera Andreia Brites. O exemplo não é tudo mas é muito, por isso a mediadora entende que pedir-lhes para lerem 15 ou 20 minutos, mesmo meio contrariados, não é necessariamente mau se (e este (“se” é de grande importância) os pais se sentarem ao lado deles a fazer o mesmo. Ou seja, “criar ambientes propícios à leitura, não só deixá-los sozinhos e em silêncio. Às vezes é um ambiente afetivo: porque é que os miúdos gostam tanto que lhes leiam histórias em pequenos?”.

Manuel Moutinho tem 17 anos e prefere ler sem a pressão e obrigatoriedade associadas aos trabalhos escolares. Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens

O cérebro dos nativos digitais

Saber ler e gostar de ler são duas coisas muito diferentes. Aprender a ler, hoje, já quase toda gente aprende mas, apesar disso, poucos aprendem a gostar de ler. Teresa Silveira garante que a aprendizagem desse gosto passa por dois fatores essenciais: estimular-lhes a curiosidade, mostrando até onde aquele conjunto de símbolos pode transportar quem os descodifica; e trabalhar a atenção seletiva, porque sem ela é impossível o tipo de concentração exigida pela leitura.

As novas tecnologias acrescentaram dificuldades à capacidade de foco dos nativos digitais. Francisco Ferreira é uma exceção: fica com um ar surpreendido quando questionado sobre se não se deixa distrair pelo telemóvel quando está a ler, como tantas vezes acontece não só a adolescentes como a adultos. “Quando estou a ler, não estou com telemóvel; não é possível estar a fazer as duas coisas ao mesmo tempo”, sustenta.

Não é possível mas é o que muita gente faz. E é por isso que, para Teresa Silveira, a pergunta essencial não é “o que se lê” mas antes “como se lê”. “Estamos a ficar ‘leitores-borboleta’: lemos um parágrafo e interrompemos, lemos outro e vamos ver o telemóvel. Sempre que há uma interrupção, o cérebro tem de fazer um esforço para retomar o sentido do texto, acaba por perder o fio à meada e, consequentemente, o interesse.”

“Estamos a ficar ‘leitores-borboleta’: lemos um parágrafo e interrompemos, lemos outro e vamos ver o telemóvel.” (Teresa Silveira, investigadora)

Mas, claro, a leitura não se pode reduzir aos livros em papel. A Internet é um mundo que permite acesso a muitas palavras. A questão é saber se os jovens usam essa potencialidade. O estudo “Lazer, Emprego, Mobilidade e Política”, publicado em 2015, diz que não. Apesar de 86,9% dos jovens entre os 15 e os 24 anos acederem à net todos os dias, usam-na sobretudo para consultar as redes sociais, conversar em tempo real, procurar informações relacionadas com eventos, produtos e serviços, ver vídeos e ouvir música. Apenas 34,2% dos jovens portugueses, por exemplo, acede a artigos de jornais.

E ainda que leiam alguma coisa, são geralmente textos com características que agravam o problema. “As tecnologias digitais fazem com que os alunos leiam textos geralmente mais curtos, mais concisos, mais resumidos, menos ricos gramaticalmente, semanticamente e linguisticamente”, opina Renato Paiva.

“Esse hábito de ler textos pequenos faz com que olhem para os livros mais densos como uma seca descomunal de 300 páginas estáticas, a maioria deles sem uma imagem.” E sem menorizar estas leituras mais rápidas, é preciso considerar que o leitor literário tem uma relação com o mundo de maior liberdade, acrescenta Andreia Brites. “Porque consegue descodificá-lo com mais facilidade, pensar sobre ele e ter sentido crítico. E isso, hoje, é quase uma urgência social.”

 

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