Uma reflexão sobre a forma como a parentalidade tem mudado, boas e más notícias, riscos inerentes aos excessos. E pistas para um meio-termo edificante.
Raquel Alves, 40 anos, cresceu numa família assumidamente tradicional, com o modelo patriarcal bem vincado. Di-lo sem constrangimentos. “Lá em casa, os meus pais eram a autoridade. Se estávamos todos à mesa, nem perguntávamos se nos podíamos levantar antes deles, já sabíamos que não.” E não lamenta que assim tenha sido. Aliás, não tem dúvidas de que colheu “os melhores frutos” disso. “Nunca quis dececionar os meus pais. Ainda hoje não quero. Sempre lhes tive muito respeito e quis ser uma filha digna.” Entretanto, também ela teve crias, de momento tem dois filhos (um com 17 anos, outro com nove meses) e dois enteados (uma rapariga de 17 e um rapaz de 14), juntaram-se já lá vão uns sete anos, recentemente veio o bebé. Agora no papel de mãe, define-se como conservadora, assume que entre a permissividade e a autoridade pende mais para o segundo polo, ainda que não se compare à rigidez que viveu enquanto filha. “Até porque também tive de me adaptar à visão do meu companheiro. Diria que estou hoje num intermédio entre o permitir e o conduzir.”
Ou seja, há regras que têm obrigatoriamente de ser cumpridas, há momentos em que ela e o companheiro se impõem e contrariam a vontade dos miúdos – sempre em situações que sejam para benefício deles, garante -, mas há, sobretudo, uma tentativa de os envolver, de os tornar parte do processo, através de um esquema de tarefas individuais, onde também está previsto o tempo em família. “É como numa orquestra. Há uma espécie de pauta onde as coisas estão previstas. É a forma que temos de criar momentos de sintonia numa família tão diversa.” E as regras? “À semana, a sopa é ‘mandatory’ [obrigatória]. Se dizem que não querem fruta, pergunto sempre: ‘Mas comeste na escola?’. Se não comeram têm de comer em casa. E, por exemplo, uma delas não gosta de peixe. Mas já sabe que tem de comer sempre um bocadinho.” Em suma, para Raquel a autoridade “é uma espécie de farol que vai guiando uma conduta mais feliz e saudável”.
Volta e meia, convive com pais que optam por uma postura diversa. “Por exemplo, se o filho quer sair da mesa e ir ver televisão vai. No nosso caso, se for uma vez, até podemos deixar. Mas sistematicamente não. Porque o que me parece é que, muitas vezes, a criança sai do contexto familiar, agarra-se ao ecrã e acaba por ficar desligada.” E assim, à boleia da história e da reflexão de Raquel, passamos em revista três estilos parentais distintos: um modelo autoritário, no qual cresceu; um mais intermédio, que ela própria procura aplicar; um mais permissivo, que vai constatando em redor. Renato Paiva, pedagogo e diretor da Clínica da Educação, admite, aliás, que esta postura tem vindo a ganhar peso. “Vamo-nos apercebendo de mais situações em que pais e filhos funcionam como melhores amigos, não há uma hierarquia de poder.” Inês Camacho, psicóloga clínica que se tem debruçado sobre o estudo das dinâmicas familiares e que, além das consultas aos adolescentes, dá “treino parental”, concorda que, atualmente, “uma parte dos pais” são excessivamente permissivos.
A importância das regras
Mário Cordeiro, pediatra que dá consultas a crianças e adolescentes há mais de 30 anos, sendo por isso espectador privilegiado da evolução das relações entre pais e filhos, reforça esta ideia, desfiando o novelo das causas e consequências. “Em muitas famílias há um receio de educar porque os pais querem fazer o papel de ‘bonzinhos’ ou de ‘melhores amigos’ dos filhos, quando deveriam ser apenas pais. Educar, ensinar e aprender são indissociáveis de ser pai ou mãe. E isso obriga a ter de dizer ‘não!’, porque a frustração, a contrariedade, as dificuldades e obstáculos, quando justos e justificáveis, fazem uma criança ou um adolescente crescer, evoluir, estruturar-se e perder as tentações narcisistas e egocêntricas.” Quando o inverso ocorre, ou seja, quando se evita dizer que não, quando se cede a cada birra, a cada amuo, a cada “cena”, temos o caldo entornado. O médico recorre a palavras duras. “[Nesse caso], estará a fazer dela ou dele um ser dominador, ditador, arrogante e jactante, em que o Mundo é dominado por Sua Excelência, sendo os outros humanos apenas escravos com caráter meramente utilitário.”
Inês Camacho reforça os riscos inerentes aos excessos. “Quando há muita permissividade, os miúdos ficam totalmente perdidos, porque crescem sem saber qual é o limite. Então vão testando e desenvolvem a personalidade desta forma, a achar que podem fazer tudo o querem. Claro que depois não vão saber lidar com a frustração.” Renato Paiva acrescenta um outro ponto, que se prende com a noção de regras hierárquicas. “Quando não há uma definição de hierarquias, as crianças tendem a achar que são excessivamente empoderadas, a não respeitar a autoridade de um polícia ou de alguém mais velho. Nós, enquanto sociedade e enquanto indivíduos, regemo-nos por regras. E numa postura demasiado permissiva as regras passam a ser um ‘nim’, os miúdos sentem que as podem ultrapassar só porque sim e isso extravasa a relação com os pais, podendo-se traduzir em casos de desrespeito pelos professores e até em mais comportamentos de risco.” Para este quadro, entende, também contribui a circunstância de muitos pais terem excesso de trabalho e portanto uma menor disponibilidade emocional para educar e impor regras. “É mais fácil dar um telemóvel para a frente”, aponta Renato.
Para Débora Sá, mãe do André Lourenço, de quatro anos, e de Helena, uma bebé de meses, a ditadura do tempo não se coloca, visto que optou por uma licença de maternidade prolongada. E isso, considera, faz toda a diferença. “Eu negoceio e giro as ansiedades dele [refere-se ao filho, porque no caso da bebé a questão ainda não se coloca desta forma] porque tenho tempo. Isso é muito importante e é algo de que se fala pouco.” Não se define como permissiva, note-se. Entende antes que segue um modelo respeitador, que encaixa numa lógica de parentalidade consciente. “Nunca pensei muito sobre o que me levou a adotar esta postura, mas o facto de eu gostar mais dele do que de mim própria fez-me respeitar a essência dele, fez-me perceber que é esta a parentalidade e a educação que eu quero.” Débora ressalva que há regras para o bom funcionamento da família, mas que tenta que estas não sejam impostas. “Se são horas de jantar e ele quer brincar mais cinco minutos, não o vou levar por uma orelha. Se ele demorar muito, explico-lhe: ‘Filho, eu sei que estás a adorar esta brincadeira, mas precisava mesmo que viesses jantar, senão vamo-nos atrasar, a mana vai chorar, os papás vão entrar em stresse. Passando esta informação, sentindo-se ele numa parte importante do processo, acaba sempre por colaborar.”
Soltar as amarras
Outro ponto em que os especialistas concordam é que tem havido, de uma forma geral, um distanciamento progressivo do estilo ultrarrígido que imperou durante décadas. “Antes tínhamos uma geração de pais mais autoritários, a disciplina era ponto assente numa educação mais formal. Quem mandava era o pai e depois a mãe e ponto final. Era sim porque sim e não porque não”, salienta Renato Paiva. Hoje é cada vez menos assim. E isso é uma boa notícia, diz. “Atualmente, já percebemos que temos muito mais eficácia quando, em vez do não porque não, explicamos porque é que é não. Claro que há pontos não negociáveis, mas com certeza vai resultar melhor se eles se sentirem integrados no processo, corresponsabilizados pelas decisões. Na roupa que vão vestir, no pequeno-almoço que vão tomar. Isto não significa que sejam eles a comandar, teremos sempre de ser nós. A escolha será sempre condicionada pelas opções que nós aprovamos. Mas essa escolha vai ser importante para que as crianças comecem a perceber as consequências das mesmas, para se sentirem seguras.” O que pode até vir a ser decisivo nessa fase endiabrada que é a adolescência. “Se isto for sendo construído ao longo do tempo, nessa altura tendem a ser menos impulsivos e mais ponderados nas escolhas que fazem.”
O desafio (quase sempre exigente, admitamos) é, portanto, tentar chegar a um meio-termo edificante. “Permissivo será sempre errado, assertivo será correto. Castigador e rígido será mau. Podemos e devemos educar com amor e uma coisa é complemento da outra”, sintetiza o pediatra Mário Cordeiro. Inês Camacho socorre-se de uma expressão que usa com frequência, para aconselhar pais à beira de um ataque de nervos: “Regras com colinho”. Que, no fundo, se resume a isto. “Há regras que são estipuladas e têm de ser cumpridas, mas há sempre aquele carinho de que ‘se falhares, estou aqui na mesma’.” A psicóloga lembra ainda que esta lógica deve ser aplicada logo a partir do momento em que a criança aprende as primeiras palavras e vai percebendo aquilo que lhe é dito. “Se faz uma birra porque quer um brinquedo e a mãe ou o pai entendem que não o deve dar, devem validar a frustração, dizer ‘nós percebemos que estejas chateado porque querias o brinquedo’, mas não ceder. Até porque ser consistente com o não é muito importante. Se se cede porque a criança chora, ela vai perceber que aquela é a forma de obter o que quer.”
E será que falta pedagogia para que uma parte dos pais tenha noção de todas estas nuances? Sim, respondem os especialistas. É certo que a Internet dá hoje acesso a um manancial de informações e visões com que possivelmente os nossos pais nunca foram confrontados, mas o caminho ainda é longo. Mário Cordeiro põe o dedo na ferida. “É preciso acabar com os complexos de culpa que muitos pais têm relativamente a educar os filhos, a contrariar e dizer que não, a equilibrar a autonomia com a responsabilidade, os direitos com os deveres. Quando se vai num veleiro e o tempo está bom, podemos todos estar a tomar bebidas no convés, mas, se se desenha uma tempestade, é bom que alguém saiba pegar no leme e rumar a bom porto. É isso ser pai ou mãe. O que não quer dizer que não haja, bem pelo contrário, amor, cumplicidade e afetos.”
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